Evaristo E. de Miranda
Doutor em ecologia, chefe da Embrapa Monitoramento por Satélite
No final da década de 70, sobrevoando o rio São Francisco em Paulo Afonso, o ex-ministro Delfim Neto comentou seu desgosto de ver aquela água fluindo em meio da caatinga sem nenhuma área irrigada visível. Alguém da Embrapa respondeu: - Ainda bem. Aqui, se irrigar, saliniza. O ex-ministro ficou surpreso ao descobrir que, conforme os estudos já realizados no semiárido, o solo era mais relevante do que água para a irrigação. Quando o avião pousou em Petrolina, ele já havia autorizado recursos financeiros adicionais para a Embrapa desenvolver a irrigação na região. E assim foi. No ano passado, a fruticultura irrigada do rio São Francisco faturou mais de 500 milhões de reais no mercado interno e externo. Mas o universo humano e natural do rio São Francisco ainda segue um grande desconhecido dos brasileiros.
A novela “Velho Chico” traz agora o rio da integração nacional para dentro dos lares brasileiros. E, com o profissionalismo e a competência dinástica da família Ruy Barbosa, muitas aventuras ainda virão. O rio São Francisco é parecido ao Tietê: teimoso, arredio às facilidades. Ambos ao nascer poderiam correr direto para seu destino, o oceano. Pertinho. Mas não. Eles se afastam do oceano, adentram as terras, caminham em direção do poente e não do nascente. E só depois de uma longa viagem, miram o leste e desaguam no mar. O Velho Chico percorreu mais de 2800 km.
O São Francisco nasce na Mata Atlântica e logo entra no bioma Cerrado, no qual se localiza 57% dos quase 64 milhões de hectares de sua bacia. Quase toda água que o rio leva para o semiárido, vem de Minas Gerais (68%) e do Oeste da Bahia (30%). A grande caixa d´água, a torneira do São Francisco, é mineira. Os sertanejos detém a caneca.
No passado, essa água escoava livremente para o mar, ao sabor de cheias e vazantes. Hoje, mais não. Existem 34 barragens construídas na bacia, das quais 30 em Minas Gerais e na região Oeste da Bahia. No semiárido são poucas, mas essas canecas são grandes: Sobradinho e os complexos de Paulo Afonso e Luiz Gonzaga (Itaparica). Barrar um rio dessa dimensão trouxe mudanças enormes e definitivas na vida da bacia.
A grande missão dessas barragens, em última instancia, é gerar energia elétrica para as capitais nordestinas. Quem liga o ar condicionado em Natal ou Fortaleza, quem usa eletrodomésticos em Aracaju ou João Pessoa ou ainda quem trabalha nas indústrias de Salvador ou Recife, raramente sabe o preço alto que os homens e o meio ambiente no vale do São Francisco, pagaram e ainda pagam em benefício do mundo urbano.
A transposição das águas do São Francisco, mais uma vez, atenderá essencialmente demandas do mundo urbano, que as transformará simplesmente em esgoto. O projeto já gastou muitos recursos e segue questionado. A transposição é possível. Contudo, o projeto atual ainda não construiu uma capilaridade de benefícios sustentáveis para o mundo rural que atravessa. A ponto de ser necessário patrulhar a obra, para que os agricultores não “roubem” água para saciar a sede de seus rebanhos e familiares.
O projeto da transposição previa a revitalização da bacia que pouco avançou. Até a definição do ministério, que deveria planejar e operar esse processo, ainda não está clara. O tratamento efetivo do esgoto industrial e urbano de todas as cidades na bacia do São Francisco deveria ser a prioridade número um da sua revitalização.
A caatinga vive grandes transformações sociais e econômicas. Em três anos de seca, com 10 milhões de pessoas atingidas, em mais de 1.300 municípios, não ocorreram saques, deslocamentos de flagelados, frentes de trabalho, invasões de cidades em busca de comida, ataques a armazéns da CONAB ou campanhas pelo país para arrecadar ajuda para as vítimas da estiagem. Esses fenômenos sempre aconteceram. Foram 1,2 milhões de alistados em frentes de trabalho em 1999. Hoje mais não.
O Programa Bolsa Família garante a alimentação das famílias no semiárido. Muita gente parou de plantar ou reduziu a área cultivada. A caatinga cresceu. Os rebanhos de caprinos e ovinos também. A sinergia com outros programas como a construção de cisternas, a ampliação do fornecimento de água para a população rural, a interligação de adutoras, a distribuição de água com carros pipa e outras ações (Bolsa Estiagem, MP 565, investimentos em infraestrutura, consolidação das áreas irrigadas etc.) é real. A moto substituiu os jumentos. E eles vagam abandonados pelas estradas.
A natureza não tem mais como salvar o rio. Ele está nas mãos de quem vive nas cidades, sobretudo no Nordeste. Sertanejos, irrigantes, agricultores e pescadores são mais vítimas do que causadores de problemas à vida do rio. Não há como compará-los à dimensão dos problemas ambientais criados por quem implantou barragens e se beneficia da geração de energia elétrica no mundo urbano. O urbanoide se preocupa com o meio ambiente. Gosta de planejar o que não executa e avaliar o que não fez. Os desafios ambientais do rio São Francisco pedem outras soluções.
Como estabelecer um processo decisório participativo no uso múltiplo das águas? A transposição e a irrigação são inovadoras nesse sentido, mas marginais e muito diferentes em suas funções. Como garantir um futuro melhor para quem vive na bacia e não apenas para os que se beneficiam de seus recursos em distantes áreas urbanas? Uma surrealista “Cooperativa do Velho Chico”, talvez fosse a solução. Como a criada pelo personagem Santo na novela. No cooperativismo: um membro, um voto. Na gestão das águas do rio, os maiores interessados não votam. Nem são convidados às “assembleias”. Recebem tarefas, encargos, migalhas compensatórias e tentam aproveitar oportunidades geradas. A gestão do Velho Chico está essencialmente na mão do setor elétrico e na demanda urbana. Eles sim são os novos e poderosos coronéis da região.